quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Depois do carnaval...

Terminado o carnaval, eis que nos encontramos com os seus melancólicos despojos: pelas ruas desertas, os pavilhões, arquibancadas e passarelas são uns tristes esqueletos de madeira; oscilam no ar farrapos de ornamentos sem sentido, magros, amarelos e encarnados, batidos pelo vento, enrodilhados em suas cordas; torres coloridas, como desmesurados brinquedos, sustentam-se de pé, intrusas, anômalas, entre as árvores e os postes. Acabou-se o artifício, desmanchou-se a mágica, volta-se à realidade.

À chamada realidade. Pois, por detrás disto que aparentamos ser, leva cada um de nós a preocupação de um desejo oculto, de uma vocação ou de um capricho que apenas o Carnaval permite que se manifestem com toda a sua força, por um ano inteiro contida.

Somos um povo muito variado e mesmo contraditório; o que para alguns parecerá defeito é, para outros, encanto. Quem diria que tantas pessoas bem comportadas, e aparentemente elegantes e finas, alimentam, durante trezentos dias do ano, o modesto sonho de serem ursos, macacos, onças, gatos e outros bichos? Quem diria que há tantas vocações para índios e escravas gregas, neste país de letrados e de liberdade?

Por outro lado, neste chamado país subdesenvolvido, quem poderia imaginar que tantos reis e imperadores, princesas de Mil e Uma Noites, soberanos fantásticos, banhados em esplendores que, se não são propriamente das minas de Golconda, resultam, afinal, mais caros: pois se as gemas verdadeiras têm valor por toda a vida, estas, de preço não desprezível, se destinam a durar somente algumas horas.

[...]

É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos nossos próprios méritos...

Mas agora que o Carnaval passou, que vamos fazer de tantos quilos de miçangas, de tantos olhos faraônicos, de tantas coroas superpostas, de tantas plumas, leques, sombrinhas...?

"Ved de quán poco valor

Son las cosas tras que andamos

Y corremos..."

dizia Jorge Manrique. E no século XV!

E falamos de coisas de verdade! Mas os homens gostam da ilusão. E já vão preparar o próximo Carnaval...

(Cecília Meireles - Texto do livro "Quatro Vozes", Editora Record - Rio de Janeiro, 1998.)


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